sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

dentro da bolha não existe erro

"-Já era hora. Esperava-te com ansiedade, não por qualquer sentimento diferente disso, era só essa coisa na forma genuína. É que prometestes me contar a história da Florbela selvagem, ou como era mesmo o nome...?
-Querida, não importa mesmo o nome. E te conto, ainda que seja já pouco tarde para lembrar-me de tudo como deve ser contado...
Morava numa árvore, que era pequena, mas pegava muito sol. Gostava das sereias, e especialmente da parte em que Peter Pan mostrava a Terra do Nunca a eles; e também do macarrão circular, com um molho de tomate em cima, comido na mesa pequena da cozinha. Gostava também do lençol de florzinhas roxas, e da única folha ali em cada uma delas. Sabe quando foi a primeira vez em que pensou na morte? Ainda bem nova, enquanto deitada sozinha na sala; bateu-lhe um pânico grande naquela hora, como se tomasse a consciência de fim, mas junto com isso, veio-lhe também o pensamento sábio de que estava verdadeiramente longe de acontecer, e que ainda tinha muito tempo para fazer o que quisesse. Não gostava do feijão da escola, nem, muito possivelmente, de ir á escola. A única coisa que talvez atiçasse sua curiosidade era a parte boa das gêmeas: não Lígia, mas Lívia. Como podia? Uma percebera o seu medo, e pusera-se a cutucá-la sem muita dó, talvez por pura diverção ou coisa assim; fazia bem como um bicho faz quando percebe que outro não sabe se defender - que coisa estranha ás vezes é a natureza, um mais forte sem querer se torna mais fraco justamente tentando ser mais forte; vira derrotador dos fracos, enquanto que estes aí, aprendem ainda além da força, uma coisa mais valiosa: a olhar a vida debaixo e ver, por baixo também, como que usando uma lupa, tudo que é detalhe bonito e pouco enxergável a olho nu. E Lívia era distante, a parte desgarrada que não estava nunca perto, a possibilidade de algo que veio do joio poder ser bela e que, se não falhava-lhe a lembrança, vez ou outra oferecia qualquer coisa que pudesse significar amizade. No mais, de todos aqueles dias sentindo-se afastada de si mesma, aprendia a ver o Mundo com a boca fechada. Mas não era ruim. Transformava-se naquilo que pode-se ser muito valioso em alguém: numa alheia. Tinha sua bolha que protegia bastante, sabe como? Criava uma companhia pra si mesma - e não é esperto isso? Ter um lugar onde o que importa mesmo e nada mais é a própria noção da vida. Porque vai que quase ninguém percebeu ainda que o jeito felicíssimo de se viver é inventando uma felicidade do além? É, querida, a gente corre o risco de ser a vida inteira sóbrio e nunca conseguir entrar nas águas da beleza, porque se tem uma coisa certa, é isso aqui que lhe digo: se você não inventa umas coisas e outras, como essas pimentas aí que caçaram no mato, a realidade fica insossa. Não é triste, não. A coisa é que, já que somos mesmo inventados, então a felicidade tá aí nesse lugar: na invenção. (...)

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